O livro é assinado por Ney, mas o fluente texto é produto da organização cuidadosa de Ramon Nunes Mello, escritor e poeta fluminense que conheceu o cantor em 2011 e, de lá para cá, pesquisou e captou os depoimentos do artista que geraram o livro.
Vira-lata de raça escapa intencionalmente do formato biográfico. Trata-se, como sublinha o subtítulo, de livro de memórias em que Ney discorre sobre a vida e a própria personalidade ora altiva ora reclusa – especialmente sobre a vida na infância, na adolescência e na fase juvenil pré-fama que se encerrou com a entrada do cantor em 1971 no conjunto Secos & Molhados. Essa personalidade rara o tornou um cara meio estranho, um cantor singular de voz única no universo pop.
Quem fala no livro é o cidadão Ney de Souza Pereira, criador da personagem artística que atende pelo nome de Ney Matogrosso. Quem somente conhece o artista através da fantasia do palco terá dose maior de surpresa com a leitura de Vira-lata de raça.
Já quem acompanha atentamente os sinais emanados pelo cantor em entrevistas em nada vai se surpreender. "Quem analisar minhas declarações públicas, em diferentes tempos, vai perceber que sempre agi com verdade e coerência em defesa da liberdade. Há tempos, venho batendo na mesma tecla: a liberdade", enfatiza Ney na página 190.
Sim, a rigor, Vira-lata de raça é libelo contra toda forma de repressão e opressão. Na infância e adolescência de Ney, a repressão foi simbolizada na figura do pai militar e castrador, Antonio Matogrosso Pereira, de quem o cantor herdou o nome artístico e com quem somente se reconciliou através da arte, quando já era um ídolo nacional.
O pai é personagem central no início da narrativa. A partir da explosão do Secos & Molhados, grupo que entrou em cena em dezembro de 1972 e se transformou na sensação musical de 1973, o opressor pode adquirir tanto a forma dos militares que ditavam as regras do Brasil como a figura difusa do público que às vezes se escandalizava com aquele cantor de voz andrógina e rosto pintado que transitava na tênue fronteira entre o masculino e o feminino, encantando as crianças e descortinando hipocrisias sociais. Um artista de voz ativa, articulada sobretudo como arma política nos sombrios anos 1970.
A partir do fim do Secos & Molhados, a narrativa perde o tom cronológico. Ney passa a discorrer sobre temas gerais (sexo, drogas e atitude rock'n'roll) que contribuem para elucidar a postura libertária do cantor diante da vida louca vida. Embora soe por vezes repetitivo, o relato reitera a coerência do artista na vida e na música.
Com o corpo inicialmente fechado para o amor, Ney lembra como se abriu para o afeto ao conhecer Cazuza (1958 – 1990), com quem viveu tórrido relacionamento durante três meses de 1979. Tempo suficiente para aflorar amor que persistiu por toda a vida, com transas eventuais, mas sem a formalidade e os códigos de convivência que regem as relações afetivas convencionais.
Nesse sentido, o relacionamento mais longo de Ney foi com Marco de Faria, com quem o cantor viveu por 13 anos com a liberdade de ter outros parceiros sexuais. Por isso mesmo, a narrativa poderia ter aprofundado mais a natureza dessa relação tão especial na vida desse artista que reitera no livro a recusa em ser visto como porta-voz da comunidade gay por acreditar que a sexualidade humana extrapola rótulos.
Valorizado por reproduzir fotos inéditas do cantor, textos sobre o artista publicados na imprensa por críticos musicais e discografia completa (com capas de discos e nomes de músicas e compositores), o livro Vira-lata de raça mostra Ney atento aos sinais preocupantes dos tempos de hoje.
Aos 77 anos, a bandeira da liberdade continua hasteada por esse artista camaleônico que troca de pele a cada show sem deixar de ser essencialmente o mesmo cantor indomável que, de cara limpa ou encoberto por figurinos e adereços fantasiosos, dá voz no palco às firmes convicções do cidadão Ney de Souza Pereira. (Cotação: * * * 1/2)
Foto: Divulgação / Daryan Dornelles