Se existe um hino da campanha nacional que uniu o Brasil em 1984 por eleições diretas para presidente, esse hino é Coração de estudante (Wagner Tiso e Milton Nascimento, 1983), sucesso na voz de Milton Nascimento, um dos artistas engajados no movimento político daquela década. Por isso mesmo, Coração de estudante tem batido forte em cenas da atual fase da supersérie Os dias eram assim, história de Alessandra Poggi e Angela Chaves produzida pela TV Globo sob a direção artística de Carlos Araújo.
No momento, a trama se situa em 1984 e foca justamente a campanha por Diretas Já. No capítulo exibido ontem, 16 de junho de 2017, foram ao ar cenas que recriam, com azeitada mistura de cenas reais e da ficção, o histórico comício por eleições diretas que, em 10 de abril de 1984, juntou mais de um milhão de pessoas em torno da Candelária, na região central da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Coração de estudante tocou e bateu forte de novo em cena.
Contudo, à medida que foi se aproximando a cena em que Alice (Sophie Charlotte) vê Renato (Renato Góes) e constata que o médico está vivo, a emoção da reconstituição do comício foi amplificada ao som de Pra não dizer que não falei de flores, famosa canção do compositor paraibano Geraldo Vandré, mais conhecida pelo povo brasileiro como Caminhando. No capítulo de ontem, Os dias eram assim reiterou a força política dessa canção que virou hino nas lutas pelas conquistas sociais. Caminhando é de 1968 e de outro momento político do Brasil, mas está associada ao mesmo governo ditatorial que desencadeou, 16 anos depois, os comícios pelas Diretas Já.
Caminhando foi defendida por Vandré na terceira edição do Festival Internacional da Canção (FIC), exibida pela mesma TV Globo que ora apresenta Os dias eram assim. Caminhando logo conquistou a preferência popular. Para o júri do III FIC, no entanto, a vencedora foi Sabiá, obra-prima de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e Chico Buarque. Musicalmente, a música de Jobim e Chico é mesmo superior à canção feita com meros dois acordes por Vandré. Porém, é bobagem enaltecer uma música em detrimento de outra. Sabiá é a prova da refinada beleza atemporal da música brasileira produzida a partir da revolução da Bossa Nova (em 1958) e da projeção da MPB (a partir de 1965) na era dos festivais. Caminhando é a prova de que uma letra forte, antenada com os anseios populares, tem poder explosivo quando encontra uma melodia simples e sedutora.
Pra não dizer que não falei de flores foi instantaneamente tão forte, na época em que veio à cena no FIC, que atrapalharia na sequência a caminhada profissional de Vandré, a partir de então perseguido pelos militares que governavam o Brasil à força. Nem todos conseguiram superar os efeitos da repressão e dar a volta por cima. Vandré ficou pelo caminho. Mas a canção dele segue inabalável na história.
Como visto ontem em Os dias eram assim, Pra não dizer que não falei de flores ainda soa forte se usada como a trilha sonora de qualquer movimento social. É uma arma em forma de canção porque a letra tem o poder de unificar ideais e convocar o povo a lutar por uma causa.
Artista arisco desde então, Geraldo Vandré fez muito mais do que Caminhando (basta lembrar Disparada, música composta com Theo de Barros que eletrizou festival de 1966 na voz de Jair Rodrigues). Mas, tivesse feito somente essa canção, já teria nome na história da música e da política do Brasil. Nome que ainda ecoa forte quando Caminhando entra em cena para mostrar que os dias eram (e talvez ainda sejam...) assim.
(Créditos das imagens: Geraldo Vandré em 1968 no III Festival Internacional da Canção em foto da Agência O Globo. O ator Renato Góes e figurantes em foto de Raphael Dias, do portal GShow)